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Foto do escritorCarla Conteiro

SÁBADO DE ALELUIA

Quando eu era criança, lá no subúrbio, o dia entre a Sexta-feira da Paixão e a Páscoa amanhecia com figuras canhestras amarradas aos postes. Eram bonecos feitos de farrapos, recheados de capim, de estopa ou de jornal velho. E de muito ódio. Aquelas figuras representavam o dono da venda da esquina que roubava na conta, o político safado lá longe em seu gabinete, o senhorio... Qualquer um que representasse algo que perturbasse muito a vida e que não fôssemos fortes o suficiente para combater. Derrubado do poste a pedradas e pauladas, o judas era então linchado por uma pequena multidão que ali vingava todos os seus recalques. Os espantalhos nem sempre eram nomeados, mas cada um que o espancava até a total destruição, que incapacitasse qualquer possibilidade de vislumbre da forma humanoide que tivera, sabia exatamente em quem e porque estava batendo. Ou não. Ódio é ódio, não precisa ser designado pelo nome. É segunda-feira, mas parece Sábado de Aleluia e as pedras estão sendo atiradas com tanta força que o poste ameaçou cair. O linchamento se estenderá até amanhã. Depois os retalhos serão arrastados pelas ruas do Brasil para que cada brasileiro possa dar sua escarrada catártica na cara deformada do molambo sem carreira, sem contrato, sem público. Que melhor maneira de representar um genocida que nega a salvadora vacina ao seu povo e entrega as riquezas de seu país? Que jeito mais perfeito de ter a revanche sobre aquele que se fez de herói para conseguir galgar posições em suas ambições políticas, mesmo que seja com o delivery da cabeça do melhor presidente do país em uma bandeja de prata guarnecida com o futuro do Brasil? Que forma mais lúdica de aliviar a própria frustração por ter sido manipulado pela imprensa, por ter acreditado em políticos sem moral, por ter deixado que potencializassem os próprios e mal disfarçados preconceitos contra pobres, nordestinos, mulheres e negros num golpe que compromete a sua vida, de seus filhos, de seu netos que ousarem permanecer nesta terra devastada? Afinal, quem é o gênio que hoje facilita a liberação de todas as perturbações de espírito da nação brasileira, num êxtase coletivo movido pela raiva que deveria provocar as mudanças de que tanto precisamos e pelo ódio do qual parece que não conseguimos nos livrar, com o linchamento simbólico de uma mulher preta?



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